Com a bagagem em cima do trem
São contraditórias as situações em que me encontro dentro de mudanças, por dois motivos: primeiro porque eu me adapto muito fácil a qualquer tipo de novidade, mesmo que acabe sendo uma imposição ou algo que eu torça o nariz logo de cara, o que foi o caso do exército. Eu queria pegar pesado, ser um rebelde e dizer "não tô afim de servir isso aí não...", mas talvez não seria a melhor maneira de fazer com que o tempo corresse mais depressa e todo aquele inferno fosse praticamente indolor. Segundo porque não consigo aceitar quando alguma coisa permanece por muito tempo do mesmo jeito, sem altos e baixos. Algo tem que mudar, uma explosão tem que acontecer e alguém tem que pagar por algum motivo a conta que nem sei se realmente é minha, e talvez este seja o único empecilho pra manter as coisas do jeito como estão, só que desta vez tudo pode acontecer diferente.
Perdi o tesão por quase tudo o que envolve aquele lugar, e depois que se sente aversão é muito mais difícil aceitá-las novamente. Cansei de ver as putas na Augusta de madrugada, cansei de ver aquele bando de bichas nojentas que ficam circulando como cadela abanando o rabo, querendo comer ou serem comidos por alguém, enjoei de alguns bares, supermercados, e também dos estudantes que ficam do outro lado da rua. Muita coisa dali certamente não vai me fazer falta, muita coisa será substituída por outras, muita coisa ali é só físico, gelado e sem sal, com pouco valor .
Mas também existem coisas que consigo carregar comigo pra qualquer lugar, independente para onde eu esteja indo. Muitas histórias continuarão dentro de mim, e muitas outras vão acontecer e eu estarei pronto pra elas. Grande parte das lembranças boas que tenho dentro daquele lugar me colocaram diante da parede, sempre bebendo muito e sempre sozinho, muitas vezes porque eu não tinha nada melhor pra fazer ou às vezes porque aquilo era o melhor a se fazer. Foi praticamente o meu segundo berço para o mundo, para o amadurecimento e também para o aprendizado das coisas sorrateiras, que finalmente ficaram pra trás. Vou sentir saudades daquele lugar, não tanto quanto eu gostaria, mas vou sentir. Também vou sentir falta de algumas pessoas dali, como o Seu Horácio e a Dona Alzira, os portugueses do boteco de baixo do prédio, que me vendiam cigarro falsificado e mesmo assim eu os comprava; daquele porco do Cícero, o chapeiro gordo da padoca que sempre fazia meu sanduíche com uma puta cara de desprezo e má vontade; do Seu Emanuel, o velhinho português que vendia frutas na esquina de cima, literalmente a preço de banana; até mesmo da Geny, a baiana que vez ou outra cortava meu cabelo e cobrava bem menos do preço normal.
Foi ali dentro que enterrei algumas decepções e frustrações, onde matei cada fantasma que me perturbava nesses dias em que eu bebia e amargurava sozinho. Dias esses que me despertaram a verdadeira ânsia de explorar as ilusões dentro da minha cabeça, a fase boa, onde eu só me ferrei com o resto, mas o importante era que eu estava fazendo o que tinha de ser feito: escrever. Dói saber que perdi no tempo um pouco dessa vontade que pulsava na época, porque não dá mais pra manter a chama acesa com tanta frequência, mas como dizia um samba do velho Adoniran: "e eu que já fui uma brasa, se assoprarem posso acender de novo..."
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