Das coisas que me trazem de volta ao café
Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, os números não significavam praticamente nada mas eu continuei pingando aspartame dentro da caneca de café até chegar no número doze, embora esteja escrito no rótulo que umas seis gotas já está de bom tamanho. De vez em quando me pego fazendo algumas coisas por impulso, como se fossem mecânicas e eu as fizesse sempre. É como tomar banho, às vezes até esqueço se já tomei ou não. Assumo que antigamente eu conseguia me convencer de que sempre já havia tomado banho e que dois no mesmo dia seria um puta exagero, mesmo sem ter chegado perto do chuveiro.
Mexi o café com o cabo da faca (as colheres tinham se perdido dentro da pia) e taquei tudo pra dentro com dois comprimidos de um trequinho colorido pra dor de cabeça e gripe. Eu não tenho costume de tomar café antes de sair pra beber, porque dá vontade de chegar no bar e perguntar "tem café?" e ficar tomando a noite toda, mesmo sabendo que não vai alterar meu estado de lucidez. E tomar café com um bando de gente enchendo a cara à procura de diversão também não é algo que pega bem, ainda mais se me taxam de "o cara que não fica bêbado antes de três cervejas", um pouco diferente daquela turma toda.
O combinado era encontrar todos num barzinho perto do metrô, lá por volta das dez horas, e só depois irmos pro lugar da festa. Ficaram buzinando na minha orelha a semana inteira "você tem que ir, você tem que ir!" e mesmo assim eu acabei esquecendo. Daí me ligam "pourra, você não vêm?" e eu já estava com a caneca de café nas mãos, sentado de frente pra mesa e com as pernas esticadas em cima de outra cadeira, pronto pra pensar "ah, finalmente...", mas mal tive tempo de calçar as meias de dormir. Disse que estava parado num bar perto de casa, conversando com uma amiga que não via há muito tempo. "chego aí em vinte minutos, não se preocupem."
Cacete, duas coisas que odeio: estudante e ter pressa. E se estiverem me incomodando ao mesmo tempo, aí fodeu. Me ataca o estômago, o cabelo fica branco e começa a cair, dói o dente, dá vontade de dar uma pedrada naquelas janelas gigantescas de vidro e só assim pôr pra fora a raiva. Tentei ter calma (mais uma vez), afinal de contas eu precisava sair de casa, já estava cheirando a mofo. E não seria tão ruim assim ver umas mulheres bonitas, que por mais que me achem um aguado sem vergonha, elas dão um belo de um caldo.
Desliguei o telefone e enfiei as calças como se estivesse descendo pra comprar cigarros no boteco do português. Não sei por quê, mas parece que consigo prever quando vou me divertir ou quando vou me frustrar com uma porcaria de uma noite mal aproveitada, só que diferente de antes, agora eu pago pra ver. E mesmo achando que aquela noite tinha tudo pra ser um fracasso, resolvi encarar como "o otimista". Passei até perfume (vai saber, às vezes pode pintar alguma coisa com as mulheres que me odeiam) um pouco antes de sair e também joguei um negócio estranho no cabelo, pra que ele ficasse parado no mesmo lugar. Fazia um frio medonho, e por mais que eu quisesse pensar positivo, sabia que o lance iria micar.
Comecei a juntar minhas coisas (chaves, documento, grana...) e quando abri a gaveta pra pegar os cigarros, achei uma cartinha que estava ali há mais ou menos um ano e eu sabia muito bem o que estava escrito e que se eu a lesse não colocaria os pés na rua de maneira alguma. É aquela hora que você pensa "puta merda, por que agora?" e até esquece que tinha um compromisso.
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