A bike que não era minha (e os arrotos)
As bicicletas em casa sempre passaram de irmão pra irmão, mas me lembro bem que só uma vez ganhei uma que seria só minha e mesmo assim não dei muita bola. Era meio que uma ordem natural dos fatos: meu irmão mais velho tinha uma cross toda ajeitada, que a galera da rua crescia os olhos nela toda vez que a gente saía pra pedalar. Daí um dia ele enjoou da cross e a febre das mountain bikes já não tinha mais como ser freada. Era como aquela propaganda da tesourinha do mickey que tiraram do ar porque dizia "eu teeenho, você não têêêm!" Ele teve que ganhar uma fudida, daquelas com dezoito marchas e olhos de gato e tal. E a cross andou na fila, ficando pra mim. Meu irmão mais novo ainda não conseguia andar com as bikes sem rodinha, então por isso ainda não fazia parte do esquema, mas mesmo assim já sabia que tinha uma azulzinha, que tinha sido minha, esperando por ele.
Só que a cross pra mim era como chiclete mascado, eu não podia ficar pegando sobra pro resto da vida (eu sei, eu não era nada modesto com nove ou dez anos). E às vezes eu pegava a mountain bike que mal dava pé pra mim e saía escondido pra pedalar no descidão asfaltado que tinha perto de casa. Eu me sentia o máximo, mesmo sabendo que todos sabiam que aquela bike não era minha, tipo "lá vêm o pirralho com a bike do irmão."
Tinha uma rua que eu descia no caminho da casa do meu avô para a minha casa, e sempre que eu passava na frente de uma casa com varanda, três irmãs ficavam debruçadas curtindo o domingo. Lembro até que uma delas estudava com meu irmão mais velho, e as outras eram ainda mais velhas que ela. Ela sabia meu nome, e por isso parei uma vez que "mexeu" comigo.
Eu era todo tímido (como ainda sou...) mas não tinha vergonha de nada. Os primeiros papos sempre eram sobre a bike. "É, é minha sim" - mas elas sabiam que um cara daquele tamanho nunca teria uma bike tão grande. Eu ficava me gabando, como se fosse o gostosão do quarteirão, que tinha as três irmãs na conversa só por causa de uma bike bacana. Às vezes eu fingia que encontrava elas por coincidência, porque corria até a esquina delas e dava uma espiada. Se elas não estavam lá, eu dava meia-volta e caía fora. Mas se elas estavam, eu pegava a bike e dava uma baita volta de quarteirão (com subidão e tudo) só pra passar na frente da casa delas e "ah, oi! vocês estão aí?" Bem cara-de-pau.
Lembro que tinha uma outra coisa que elas gostavam em mim além da bike, que nem era minha. Era que eu conseguia arrotar muito bem, e elas nem faziam idéia do que era preciso pra tirar aquele som da boca. Então às vezes eu só parava na frente da casa delas e soltava um baita arrotão, pra avisar que eu estava por perto. De quando em quando a gente fazia outras coisas também, mas nada muito além de falar da bike ou dos meus arrotos. A verdade é que eu nunca as vi fora da varanda, na calçada. Acho que fui ver só uns anos depois, quando eu já nem falava mais com elas e também se fosse falar, já teria outros interesses além da bike ou dos arrotos, porque nem um nem outro era mais meu ponto forte.
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