Um Circo, um Palhaço, um Pipoqueiro, alguns amores, muitos porres. E uns textos complicados sem pé nem cabeça.

3.5.06

Lendas

Estávamos eu, minha mulher grávida de sete meses e a criança de sete meses que a gente ainda não sabia nem o nome nem o sexo (minha mulher era hippie, não se importava com essas coisas), num programa de entrevistas sendo bombardeados por perguntas estúpidas e particulares, e aclamado por uns trezentos ou mais estudantes que gostavam de mim. Olha só, eu não tenho nem trinta anos e já existe um monte de jovens suburbanos vestidos como eu, que bárbaro.

- Me diz uma coisa, você não se acha muito novo para parecer velho desse jeito?

Fiz silêncio, olhei pros lados como se nunca tivesse ouvido aquele tipo de pergunta, e soltei:
- Que jeito?
- Deste jeito, como você se veste, se porta e também como fala. De onde vêm isso?
- Vêm de mim, oras. Da minha criação, dos meus pais e também da forma como eu encaro a vida.
- Com muita paciência?
- Sim, com paciência.
- Mas mesmo sua aparência. Não acha que é um pouco de exagero?
- E o que é exagero neste país quando uma família da capital, com cinco pessoas, têm cinco bons carros?

O entrevistador era um puta chato, que ficava fazendo intriguinhas pra ver se me deixava nervoso na frente dos estudantes e de minha família. Estava me usando pra atingir as camadas mais baixas da sociedade, tentando vender seu programinha lixo pras pessoas que o odiavam. Mal tocou no assunto do livro, que era (ou seria) o principal fundamento da minha presença.

- A gente percebe que nos últimos meses você tem evitado um pouco da chamada "vida social". A que se deve isso?
- À bebida, às minhas mulheres, meus livros... Ou mesmo à falta de todos eles.
- Bebida? Você poderia nos falar um pouco sobre ela?
- O senhor têm alguma aí?
- Com que frequência costuma beber?
- Já ouviu falar em ressaca? Pois bem, é algo que não tenho há anos...
- Então é por que bebe demais ou por que não bebe há anos?
...
- E as mulheres?
- Que é que tem as mulheres?
- Como é sua relação com elas?
- Tirando minha mulher e minha mãe, o resto delas me odeia. Dizem que eu as deixo enojadas, isso é normal? Você está enojado? Não acho que eu seja tão ruim assim pra elas.

A cada tiro curto que eu dava, ele olhava pra sua mesa e procurava uma resposta pras minhas rebatidas. Eu me saía bem, por enquanto.

- Me fale de sua infância. Foi difícil?
- Difícil? Não. Eu não passei fome, meu pai não era alcoólatra e também não batia em minha mãe. Minha irmã sempre foi estudiosa e não é por acaso que virou uma tremenda advogada. Enfim, tive uma infância comum, como a maioria dos rapazes da minha idade.
- E por que decidiu seguir por um caminho pouco comum?
- O que é comum pra você? Usar brincos de pena de arara é comum? Que eu saiba as araras estão morrendo, e isso não deveria ser nada comum...
- Tudo bem, vou refazer a pergunta. Já que teve uma infância boa, com pais presentes e uma situação financeira estável, o que o fez escolher pela profissão de escritor?
- Ah... bem, eu... sinceramente não sei. Acho que tomei essa decisão muito cedo, e quando chegou a hora de escolher uma profissão eu praticamente já tinha uma. Minha mãe não gostava, meu pai não ligava, mas mesmo assim não queria ser só mais um rapaz que deixava a cidade pra conseguir um diploma. Eu queria algo mais.
- Esse algo mais seria fama e dinheiro?
- Não sei , talvez apenas reconhecimento . Eu não precisava de um caminhão de dinheiro por causa de uns textos que nem eu mesmo consigo entender. Eu só queria ter uma vida menos medíocre do que a de muitos caras que conheci por aí.
- E esses caras que você "conheceu por aí", quem são?
- Hoje não sei mais quem são esses caras, mas naquele tempo eram meus melhores amigos. Pessoas com quem passava mais tempo junto do que com minha própria família. Eram caras legais, passamos por boas juntos, mas hoje não tenho mais notícias deles. Devem estar mortos ou então em alguma clínica por aí.
- E são para estas pessoas que você escreveu este livro?
- Esses caras? Não, não sei. Não sei como eles estão agora. Mas há muita coisa neste livro referente àqueles tempos em que convivi com eles. Talvez não exista mais ess tipo de pessoa hoje em dia. Esses caras viraram lenda!



E antes do encerramento do programa, acordei com a freada do ônibus, que parava no posto de Moji.